Uma das maiores fintas que o teatro académico fez ao Estado Novo está de regresso ao local do crime…
Peça “A Ilha dos Escravos” (re)estreia a 27 de Março em Coimbra
Reconstituição da peça “A Ilha dos Escravos” volta a Coimbra mais de meio século depois, mas muito a tempo de, em cima do Dia Mundial do Teatro, lembrar a importância da liberdade de expressão. Com a assinatura do coletivo Visões Úteis O olho da censura prévia do Estado Novo deixou-a passar incólume pela dioptria. Mas, a subida a quatro palcos (Ovar, Coimbra, Aveiro e Castelo Branco) dissipou então as remelas e permitiu percebê-la só a posteriori. Ainda a tempo de proibir a estreia da peça em seis cidades (Porto, Guimarães, Braga, Famalicão, Covilhã e Funchal). Cinquenta e cinco anos volvidos, está de volta aquela que alguns apontam como uma das maiores fintas do teatro académico ao regime político de então.
cardapio.pt @ 12-3-2025 18:54:07
E o regresso d’A Ilha dos Escravos, uma tradução sobre o texto original de Pierre de Marivaux, dar-se-á no mesmo local do crime: Coimbra. Agora longe da crise académica de 1969, mas de renovada oportunidade na recordação sobre a importância da liberdade de expressão. E, ainda por cima, em pleno Dia Mundial do Teatro.
Ironia do destino ou não, as segundas núpcias d’A Ilha dos Escravos, programada para entrar em cena no próximo 27 de março, no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), às 21h30, não estão nada divorciadas deste tempo que muitas sociedades - ditas globalizadas – atravessam e o qual “já esteve bem mais favorável para muitos direitos fundamentais”, daí a recuperada pertinência da obra.
A observação é de Carlos Costa, diretor artístico do Visões Úteis, coletivo portuense que, com a parceria do TAGV, do LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas da Universidade de Coimbra e do TEUC, assume a recriação. Ciente da dificuldade desta tentativa de olhar para o passado através da máquina do tempo e da arte cénica, ou, como explica, um “exercício reflexivo em torno da (im)possibilidade de reconstituir um objeto artístico que ‘aconteceu’ no passado”.
Esta reconstituição - que se aproxima da prática artística enquanto investigação científica e, também, dos Estudos da Performance, com uma abordagem mais espetacular, sobretudo na recriação de momentos históricos emblemáticos -, deve-se em grande medida à descoberta, no arquivo do TEUC, do guião do ponto, do técnico de iluminação e da versão final do texto apresentado na data de estreia, bem como de cartas e outro tipo de documentos (já digitalizados com o entusiástico apoio da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). Os quais confirmam o atribulado processo de criação e produção do espetáculo nos idos de 69, que antecipou as discussões que viriam a ganhar força durante o período da crise académica. Principalmente, em torno da linha de ação da associação de estudantes e do tipo de teatro que deveria vigorar em momentos de repressão política.
Foi neste contexto que, pela primeira vez em Portugal, o TEUC apresentou a peça do dramaturgo francês como um espetáculo de marionetas, encenado por Luís de Lima. No Arquivo da RTP é possível aceder à gravação sem som d’A Ilha dos Escravos feita em Castelo Branco.
Aprovada pelo lápis azul do Estado Novo, a trama oitocentista surgiu como uma reclamação burlesca da liberdade e de renovação do teatro português, que tinha como principais aliados os grupos de teatro académico. Após algumas récitas, o espetáculo foi proibido. A censura prévia compreendeu, finalmente, que na análise do texto dramático já não bastava para adivinhar as intenções dos inquiridos, porque os processos cénicos utilizados acrescentavam múltiplas camadas que podiam contrariar tanto os intentos dos censores como do próprio dramaturgo.
Segundo explica Joana Ferrajão (Visões Úteis), na qualidade de diretora artística e científica desta produção, e citando o encenador e o texto do programa de 1969, o texto da versão francesa d’A Ilha dos Escravos foi despido da ambiguidade e do “tom de comédia alegórica” originais, isto para denunciar abertamente, na versão do TEUC, a “desigualdade que os homens permitem que reine entre eles”.
A peça, recorda-se na sinopse, abre com um naufrágio que atira servos e patrões para a Ilha dos Escravos, um lugar idílico para onde fugiram escravos que queriam ser livres, e que se distingue das demais ilhas gregas pelas leis que ali são aplicadas.
“Nesse passado remoto, era imperativo que se matassem todos os patrões que porventura pisassem aquele solo, pela proteção da ordem coletiva. Porém, os tempos foram benevolentes: agora acredita-se no perdão e na reconstrução do indivíduo, pelo que a inversão momentânea dos papéis de escravo e patrão parece suficiente para a manutenção da liberdade. É numa teia burlesca de relações de poder que as personagens se encontram e compreendem, denunciando “o quanto são lamentáveis enquanto realidades sociais, tanto os patrões como os escravos”, pode ler-se.
Durante a primeira fase do processo de investigação para o novo fôlego da obra, várias questões adicionais foram levantadas sobre a manutenção dos arquivos dos vários organismos autónomos da associação de estudantes de Coimbra que se dedicam às artes performativas, como o CITAC - Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e o GEFAC - Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra.
“A Ilha dos Escravos”
TAGV – Teatro Académico de Gil Vicente, 70´, M/12
Praça República, 3000-343 Coimbra
Ficha artística e técnica
Direção e Dramaturgia: Joana Ferrajão, Cenografia: Diogo Barbosa, Figurinos: Lavinia Zuccalà, Desenho de Luz: Nuno Vasco, Banda Sonora: Nuno Pompeu, Interpretação: Mariana Banaco, Maria Rui Cunha, Zé Ribeiro, Coordenação de Produção: Cláudia Alfaiate, Contabilidade: Helena Madeira, Direção Artística e Científica da segunda edição de REENACT NOW: Joana Ferrajão, Coordenação Artística e Científica de REENACT NOW: Carlos Costa, Supervisão Científica de REENACT NOW: Fernando Matos Oliveira, Produção: Visões Úteis, Coprodução: TAGV, em parceria com LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas da Universidade de Coimbra, Parceria: TEUC - Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, Duração aproximada: 70 minutos, Faixa etária: maiores de 12 anos de idade
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